22 de setembro de 2007

A Gata e o Mar



O barulho das minhas unhas arranhando o chão de pedras era o único silencio audível àquela hora da noite. Ou já seria dia? Não quis olhar para trás, mas sabia que a lua já não estava mais lá.

Antes de entrar nessa história vamos esclarecer uma coisa. Todos nós temos sete chances para aprender a não cair, mas só aprende a levantar quem usa pelo menos uma. Foi o que fiz.

Acordei das duas horas diárias em que separo para sonhar e fui ver o mar do alto da pedra que os outros chamam de Gávea. Esse costume de olhar meus medos do alto me acompanha desde o primeiro dia em que o vi de frente pela primeira vez. Ele, o Medo, apareceu vestido de homem, trazia leite numa mão e uma coleira na outra. Mas eu ainda não sabia o que era uma coleira. Aproximei-me, tomei o leite e aceitei o presente.
No dia seguinte, acordei e ele ainda estava lá. Tentei voltar para a rua de pedras, mas não saí do lugar. Meu corpo não obedecia minha mente e foi então que entendi. O leite... O presente...
Lutei, mas ele era mais forte, mas não mais ágil e foi aí que tudo começou. Ele trancou as portas e eu não podia sair. Trazia leite, sushi e me contava estórias. De vez em quando pegava uma prancha e subia em ondas. Eu via tudo da janela, mas tinha medo de cair, de me afogar, de não saber nadar, por isso voltava correndo para meu lugar seguro.

Olhava para ele lá embaixo e sabia que era meu. Mas espera aí. Se eu penso isso daqui de cima, ele pensa isso lá de baixo. Senti meus pelos arrepiados. Eu, ser dele? Olhei ao meu redor. Coisas. Olhei para baixo. Uma imensidão de liberdade. Ondas. Vento. Pedras. Os pensamentos me deixaram tonta e quando vi já estava caindo.
Mas eu sou uma gata. Gatos não caem. Pulam. E foi então que descobri. Eu podia voar. Saí correndo, pulando sobre as casas. Entendi porque ele queria cortar minhas unhas quando escalei a pedra mais alta e pude então ir mais longe do que jamais imaginou um gato. Abri os olhos e fui em direção do mar. No começo tive medo, afinal nós não deveríamos saber nadar, mas depois mergulhei. Abri os olhos lá embaixo e descobri outro mundo, tão lindo quando a floresta onde nasci. Eu já não lembrava mais do Medo quando senti novamente aquelas mãos me puxando. Mas aí já era tarde. Eu já havia tomado e gostado do seu próprio veneno.

Mergulhei mais fundo e saí da água. Ele veio junto e subiu comigo na pedra. Dessa vez eu fui mais alto. Olhei para trás e vi a cidade se transformar em memória. Quando em fim já não podia distinguir quem era gente e quem era pedra, olhei de novo para ele. Lembrei do leite, da coleira e da janela.
Ele estendeu a mão e eu pulei sobre ele. Caímos os dois. Por muito tempo me senti caindo e o vi voar.
Mas antes de chegar ao chão, meus instintos gritaram. Soltei-me e caí sozinha, de pé. Gastei a primeira vida, mas ganhei outras seis. Ele? Não sei. Não gosto mais de leite e quanto ao peixe, agora eu já sei nadar.


Escute a música desse post!

Um comentário:

Gabriela Vargas disse...

Nossa, gigi, que história mais linda. Um gato, poder se imaginar como outro ser, realmente tem que ser alguem muito especial para pensar assim. Adorei e adorei mais saber que o gato descobriu a Liberdade.