Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Devia ser noite, talvez já madrugada. Os carros devem ter
passado pelo acidente da mesma forma que passam pelos meninos dormindo nas
ruas, indiferentes. Mais uma batida. Só que naquele dia, quem estava dirigindo
era um menino especial. O menino, assim como muitos da sua idade, havia bebido.
Uma, duas, várias. Acontece. Já fomos adolescentes e também já bebemos um dia.
Ele saiu de alguma festa e decidiu dirigir.
E foi ali, naquela decisão que cometeu o acidente. Talvez
não batesse o carro. Quem sabe não atropelasse ninguém. Ou nem chegaria em
casa. Dirigiria com cuidado mas o álcool, o “verdadeiro” culpado o
entorpeceria, acalmaria seus olhos e descansaria seu corpo num canto sujo de
asfalto, ao lado de um muro e um carro despedaçado. Como saber?
Mas o menino era especial. Ele sabia tudo. Tinha a idade da
razão. Comigo isso não acontece, diria ao amigo “medroso”.
Mas aconteceu, ou pelo menos na teoria. O carro foi mais
rápido que o farol que insistente, continuou vermelho mesmo depois do menino
mandar abrir. Ele passou. Passou por cima de outro carro. Um motorista
ignorante, acreditou estar seguro ao atravessar um cruzamento iluminado pela luz
verde.
O menino com quem nada poderia acontecer levou um susto. Um
pesadelo batendo na porta errada.
Mas o que fazer quando no meio da noite um menino especial
tem um sonho ruim? Claro, clamar seu pai. O pai do menino era um homem sério, um
desembargador. Já nasceu com “caráter ”. Homem determinado e sem vícios, nunca
teve. Não ha de ter vivido uma adolescência regada a cervejas e muito menos
algum cigarro enrolado em palha e com recheio duvidoso. Não, ele não. Isso era coisa
de delinquente, de bandido e isso ele nunca foi. Lugar de bandido, costumava
dizer, era na cadeia, ao lado de criminosos.
Foi assim que o nobre desembargador cresceu até chegar à sua
sala com paredes cobertas por fotos em que abraçava alguma personalidade,
também respeitável. O ar condicionado deveria ser forte para não suar no
colarinho apertado da camisa feita sob medida e com iniciais bordadas em tom
grafite, sóbrio.
Foi tudo muito rápido. Sonhos são rápidos. O menino ligou. A
camisa estava no encosto da cadeira de couro, bem ao lado do copo de whisky. O
desembargador bebia, mas apenas socialmente. Apagou o cigarro no cinzeiro de
bacarat e antes de acordar a mulher adormecida de lado, vestiu a camisa e foi
acudir o filho.
Deveria ser rápidos e nada teria acontecido. O pesadelo
voltaria para as profundezas da imaginação.
Os policiais chegariam, mas eles já haveriam sumido, como manda o código
dos homens e meninos especiais.
Um amigo do menino conversou com o policial que reconheceu logo
o nome do homem. Sim, era ele, o respeitável desembargador, responsável pela
proibição de uma absurda marcha da maconha, onde meninos e homens ordinários
tentavam defender a legalização de uma droga absurda.
Chegou em casa, guardou as chaves e foi para o escritório,
onde outro copo, outra camisa e outro documento o esperava com a calma que todo
homem de respeito merece.
5 comentários:
....
já passamos por algo parecido. Aconteceu com o meu espelho.
Bela crônica, Gio!! Quase um conto. Parabéns!!
Vc conseguiu passar todo o cinismo e hipocrisia que reinam nessa sociedade brasileira.
bj
Pedro, sempre que leio algum comentário seu, corro lá em sua antiga "casa" torcendo para seu blog ter voltado à vida, mas nada. Um dia ainda terei a boa surpresa de encontrar a casa de roupa nova e flores na janela.
Julio, obrigada por seu comentário, essa sociedade em que vivemos é boa mesmo para fazer filmes de mafia e escrever contos absurdos. A realidade é cruel.
Sandro, obrigada, seus comentários são sempre muito bem vindos,
beijos a todos e até mais
Muito boa crônica Giovanna!!Queremos mais!!
Postar um comentário